terça-feira, 30 de novembro de 2010

A volta do sucesso Vale Tudo

Hoje é dia de Odete Roitman na TV
A grande vilã de 'Vale Tudo', fenômeno da TV paga, fala sobre seu papel
10 de novembro de 2010
Patrícia Villalba, Roberta Pennafort e Flávia Guerra
O telespectador só vê os olhos - grandes, verdes, lindos - e ouve a voz - esnobe. "Você fica com a gente?", pergunta Celina (Nathália Timberg). "Não, viajo acompanhada. Reserve uma suíte presidencial num desses hotéis limpinhos, mas sem mendigos na porta", recomenda Odete Roitman (Beatriz Segall), na cena que foi ao ar na reprise de Vale Tudo no Canal Viva e marca a volta à TV de uma das maiores, senão a maior, vilã da teledramaturgia.
Rede Globo/Divulgação
Rede Globo/Divulgação
Beatriz Segall/Odete Roitman, após 22 anos.
Para a atriz, a possibilidade de se fazer uma nova versão para a novela não existe. “A Globo hoje não tem elenco para fazer um remake de 'Vale Tudo'", alfinetou. Aos 84 anos, ela acredita que o jeito de se fazer novela mudou devido à concorrência. “A Globo foi atrás do público dessas emissoras que começaram a produzir programas menos elaborados. Hoje, vejo coisas [na Globo], que no tempo do doutor Roberto Marinho, não aconteciam”.

Morta e enterrada após levar o tiro que, a gente já sabe, vai tirá-la de cena no capítulo 193 e instalar a dúvida "quem matou Odete Roitman?", a péssima senhora é esperada por notívagos saudosistas que fizeram da novela de 1988 fenômeno de audiência da TV paga - é o programa mais visto no horário, 0h45, e ainda movimenta as redes sociais, que repercutem as cenas madrugada adentro. Na frente da TV também está o autor Gilberto Braga, que escreveu a trama com Aguinaldo Silva e Leonor Bassères. "Vi os primeiros capítulos, a sensação é boa. O sucesso vem do fato de a novela ser boa, a história prende e os personagens são muito fortes", analisa ele, em entrevista ao Estado, afastando qualquer comparação com as tramas atuais e as ideias de falência do gênero.
Braga não precisa de falsa modéstia, porque é notória a importância de Vale Tudo para a história da TV, não só pela qualidade do texto e das interpretações, mas também por ser um espelho bastante realista dos primeiros anos da abertura política, quando a identidade do País era questionada. Um ano antes da que seria a volta do voto direto para presidente, 1988 foi o momento perfeito para a novela perguntar "vale a pena ser honesto no Brasil?", dúvida ilustrada pela história de Raquel (Regina Duarte), mulher recém-separada e batalhadora que leva um golpe da filha ambiciosa, Maria de Fátima (Glória Pires). Não foi a primeira novela a usar temas atuais - lembremos de Roque Santeiro (1985) -, mas a que fez isso de maneira mais contundente, num primeiro plano.
Maria de Fátima e Raquel, a filha ingrata e a mãe sonhadora, em 'Vale Tudo'. Foto: Bazilio Calazans/Canal Viva/Divulgação
Surpresas. Vale Tudo é o tipo de programa que transporta o telespectador no tempo, com pensamentos como "onde eu estava na época em que os moços e as moças dançavam música lenta?". Braga não escapa da situação, e conta que teve algumas surpresas ao rever a novela. "Não lembrava, por exemplo, que a Regina Duarte estivesse tão brilhante. Nos dez primeiros capítulos só dá ela, fantástica."
Imerso em inflação alta e às voltas com a promulgação de nova Constituição, o Brasil foi avacalhado pelas frases cortantes de Odete e atitudes de personagens de caráter duvidoso, como Marco Aurélio (Reginaldo Farias). Talvez nenhum recado tenha sido passado de maneira tão direta pela teledramaturgia até então. "Quanto menos eu ouvir falar português, melhor", diz ela ao finalizar o tal telefonema que anunciou sua volta de Paris. Mas embora hoje o País esteja no grand monde (para usar uma expressão da época), Braga não parece tão otimista. "Não acho que (o País) tenha mudado tanto assim, e gostaria que tivesse", compara o autor, que acredita que Vale Tudo esteja atraindo tanto os que viram a novela no original quanto telespectadores de primeira viagem. "Felizmente as pessoas já não aceitam a impunidade como aceitavam em 88, inclusive acho que a novela ajudou a que isso acontecesse."Costumes. Alcoolismo, homossexualismo, corrupção e outros temas pouco frequentes na TV da época foram usados com a polêmica no volume máximo para compor os personagens da novela. Talvez por isso que a trama pareça tão atual, apesar do salto de qualidade de imagens que a TV teve nestes 20 anos e das mudanças na moda e de costumes - é até engraçado e estranho, por exemplo, ver os personagens fumando em cena, sem culpa. "Certas coisas soam estranhas, por exemplo, as roupas femininas, era a moda oversize", diz Braga. "Também estou achando que o texto sobrevive. Às vezes acho didático demais, mas nada é perfeito."
Prestes a estrear Insensato Coração, que substituirá Passione de Silvio de Abreu na metade de janeiro, Gilberto sabe que Vale Tudo é referência carregada de responsabilidade, mas nunca se preocupou com a possibilidade de a novela se tornar um fantasma na sua carreira, a persegui-lo e gerar comparações com o que ele escreve hoje (veja entrevista com Beatriz Segall). "Nunca senti que isso tenha acontecido comigo. E adoro quando a novela provoca discussão", garante ele que, no entanto, não se anima a lançar uma nova versão para a história de Raquel. "Prefiro que não tenha remake, porque seria difícil reunir um elenco como aquele." (Patrícia Villalba)

ENTREVISTA COM BEATRIZ SEGALL
Beatriz Segall, aos 84 anos, não tem disposição para ficar acordada até as 2 da manhã para assistir a Vale Tudo. Prefere esperar os amigos que estão gravando a novela para ela. Costuma dizer que Odete Roitman a persegue. Mas agora que a reprise, um fenômeno das madrugadas do Canal Viva, coincide com a estreia de sua peça, Conversando com Mamãe, no Rio, espera que ela traga o público para vê-la também no teatro.
Não é incrível um personagem que ainda tenha essa força, passados 20 anos?
Foi uma novela muito especial. A Heleninha também foi um personagem interessante. Todo mundo estava muito bem: a Renata (Sorrah), Nathalia (Timberg), Glória Pires... O Riccelli fez ali o melhor trabalho dele.
Na época, a repercussão da Odete foi imediata?
Eu fiquei reclusa durante a novela, porque tinha texto demais pra decorar. Só fui ter noção quando acabaram as gravações... Até hoje, é muito chato as pessoas chegarem para mim falando "Quem matou Odete Roitman?", isso com uma cara de quem está atingindo um objetivo importante na vida...
Odete foi boa de fazer?
Ficou muito marcada. Até então, os atores não gostavam de fazer o vilão, porque não conseguiam fazer comerciais. Depois se viu que o vilão é quem dá movimento à novela. (Roberta Pennafort)
MODA: DAS FRANJAS ÀS OMBREIRAS
"Nossa mãe era jeca mas não vendia sanduíche na praia." Assim Odete Roitman (Beatriz Segall) retruca à irmã Celina (Nathália Timberg) e defende Maria de Fátima (Glória Pires) ao saber, momentos antes que seu filho se casasse com a jovem vilã, que foi ela quem virou a cara para a mãe, a honesta, mas cafona, Raquel Accioly (Regina Duarte). Isso quando viu a mãe vendendo sanduíche na praia. Raquel, que vestia um frugal vestidinho florido, com ombreiras, claro, e bolsinha tiracolo, ficou arrasada, bateu na filha quando as duas foram deixadas a sós na antessala do casamento e ainda rasgou o vestido de noiva ‘todo trabalhado na manga comprida e gola alta’. Quando Odete volta à cena, diz: "Estas rendas levaram um mês para ficarem prontas".
A cena é antológica não só por ser ‘reveladora’, mas também porque mostra exatamente que o que ditava moda na época era o estilo over. Nos anos 80, ‘mais era mais’. Mais volumes, mais cintura alta, calça bag, mega laços, franjas. A franjinha da jornalista Lídia Brondi (Solange) virou febre nacional. E o chanel clássico super simétrico de Maria de Fátima? Quem era criança nos anos 80 e não viu a mãe desfilar ou de franjinha, ou de chanel em 1988 e 1989? As mais ousadas apostaram no pigmalião de Heleninha Roitman (Renata Sorrah). Com ares de Tina Turner tupiniquim, a cabeleira da artista plástica ganhou versões mais contemporâneas nos últimos anos.
 O chanel é um clássico, mas a franjinha tem ganhado adeptas e surgido em vilãs contemporâneas. Basta conferir o visual de Melina (Mayana Moura) de Passione. Apesar do corte de Mayana ser inspirado na diva americana Louise Brooks (1906-1985), não há como não se lembrar da fase em que Maria de Fátima também adotou a franjinha angelical. Já no figurino, se um item deve ser lembrado, definitivamente são as ombreiras. Enormes, elas estavam lá, desde o clássico tailleur pérola de linho de Odete (que se espera que nunca mais volte) até os vestidinhos de Raquel, passando pelos ternos de Marco Aurélio (o inescrupuloso Reginaldo Faria, que deu aquela ‘banana’ inesquecível ao Brasil no último capítulo). O que também não deve voltar jamais são as tanguinhas de César Ribeiro (Carlos Alberto Riccelli), aquele que não transava violência, mas adorava uma cuequinha cavadinha. (Flávia Guerra).


Maior audiência do canal a pago Viva, a reapresentação de Vale Tudo, novela de 1988, vem dando o que falar. Vinte e dois anos após sua exibição na TV Globo, a trama, que abordava uma série de problemas do Brasil dos anos 1980, ainda parece atual. Atual porque todas as novelas que estão no ar hoje, de uma maneira indireta, devem algo a Vale Tudo, seja pela inserção de alguns assuntos atuais na trama, seja pela repetição de alguns velhos clichês, que na época ainda pareciam inovadores. Confira nos itens abaixo porque a novela marcou a teledramaturgia brasileira.
Ricos e pobres sempre dividiram o mesmo espaço nas novelas, mas em Vale Tudo tal fração era tão incômoda, que constantemente entrava na trama como um apetrecho. Por um lado, tinhamos o núcleo dos Roitman, esbanjando dinheiro e explorando funcionários. Maria de Fátima (Glória Pires) também escancarou seu ódio à categoria que ela também se incluia, mas nunca teve coragem de admitir, ao tentar passar por cima de tudo em busca de sucesso. E lá no Catete, onde o núcleo mais "simples" da novela morava, não era raro ver um ou outro personagem comentando o preço dos produtos no supermercado. Cada um sobrevivia de sua forma, é verdade, mas poucos personagens eram verdadeiramente honestos. Logo no começo da novela, as secretárias Aldeíde (Lília Cabral) e Consuelo (Rosane Gofman) se questionam: "você preferia ser Fátima (a filha oportunista) ou Raquel (Regina Duarte, a mãe honesta e ingênua)?", numa clara referência ao grande tema da novela: "até onde se chega com honestidade num País como o Brasil?"
Armações e vilanias ganharam um novo tom em Vale Tudo. Os vilões permaneceriam fazendo maldades e apimentando as tramas, mas quase nunca para destruir o outro, e sim por benefício próprio. No começo da trama, percebemos que a filha ingrata, Maria de Fátima, também tinha seu lado humano. Apesar de querer passar por cima da família para alcançar sucesso como modelo, ela nunca negou ajuda direta aos pais, a quem, mesmo que lá no fundo, ainda mantinha uma certa compaixão. Marco Aurélio (Reginaldo Faria), apesar de ser um chefe obcecado, grosso e oportunista, demonstrava clara preocupação com o filho Tiago (Fábio Villa Verde), incomodado com sua timidez e querendo ajudar, mesmo com seu modo chulo e machista, a colocar seus problemas de lado. Marco Aurélio também mostrava algum tipo de simpatia pelo primo, Renato Filipelli, ajudando-o, apesar de suas diferenças. Por outro lado, Odete Roitman (Beatriz Segall) encarou a vilã incondicional, aquela que só tinha amor a si e a sua grana. E ainda falando de armações, o que dizer de Ivan Meireles (Antônio Fagundes), que acabou preso por corrupção após um plano mirabolante de Odete?
Em 1988 (ano que a novela foi exibida), o Brasil estava se recuperando de seus piores anos de crise econômica e vivendo os reflexos de um governo que colocou milhões de pessoas na pobreza. Com o País desmoralizado aqui dentro e lá fora, muitos personagens refletem em suas atitudes o que é sobreviver dia-a-dia num lugar onde não se pode confiar no governo e tão pouco nas pessoas ao seu redor. Rubinho (Daniel Filho) é talvez o personagem mais afetado por esse cenário de crise. Apesar de seus esforços para ser pianista e se consagrar nos Estados Unidos, ele raramente consegue pagar as contas, sendo obrigado a sublocar seu apartamento de 28 mil cruzeiros por mês a Ivan. A novela aproveitava para fazer sua crítica ao império americano, bem como o Brasil. Tom Jobim era citado frequentemente pelo músico como um homem "aclamado lá fora", mas "ignorado pela massa brasileira". Sua gastura para conseguir um visto americano, bem como uma passagem, é certamente um momento para se compreender o que era o Brasil nos anos 1980. Enquanto hoje temos filas de brasileiros esperando seu visto no Consulado, naquela época tirar um sem renda fixa era praticamente impossível. A melancolia culmina na morte do personagem que era, sem sombra de dúvidas, o maior representante do dito "sou brasileiro e não desisto nunca".
Vale Tudo foi uma das últimas novelas a colocar o cigarro como personagem coadjuvante em cena, sem com isso, incentivar à prática. Raquel vivia dando broncas em Rubinho sobre o péssimo hábito. Por falar em hábitos, a novela também abriu espaço para a questão social do vício ao abordar o drama de Heleninha (Renata Sorrah), alcoólatra convicta que vivia dando seus vexames por conta dos goles a mais. Um cenário perfeito para as novelas de Manoel Carlos, mas que em 1988, estava bem fora dos padrões. Vale Tudo questionou, em cena, o drama dos viciados: eles deixaram de ser vagabundos e ganharam a simpatia do público pela luta.
Em cenários de crise econômica tão abordados na novela, nem pessoas com mestrado tinham o direito de colocar comida na mesa sem antes batalhar muito por isso. Ivan representava um desses personagens. Apesar de ter alcançado uma carreira gloriosa, seu diploma não foi capaz de salvá-lo da pindaíba e ele é obrigado a trabalhar como "operador de telex" para pagar pelo menos um pouco de suas contas. A novela também mostrou que um pouco de obsessão não faz mal a ninguém. Raquel era uma dessas mulheres sonhadoras que conseguiu subir na vida. Ao ver que a única coisa que sabia fazer bem era cozinhar, passou a vender sanduíches na praia para depois tornar-se a dona de uma rede de restaurantes industriais. Coisa boba, mas que seria padrão para as novelas seguintes.
Não pense que temas que saem nos jornais e aparecem em novelas foram criações de Manoel Carlos. Em Vale Tudo, isso era muito frequente. Como a crise econômica era plano de fundo na trama, muito se falou sobre a econômia - em diálogos sobre o aumento dos aluguéis e dos produtos básicos - e até sobre a poupança overnight, uma aplicação que ia direto para os cofres do governo e gerava rendimentos ilusórios de até 60% ao ano. Ilusórios porque em cenário de inflação extrema, os produtos chegavam a ter uma variação absurda de preços de um dia para o outro, bem como os rendimentos da tal poupança. Isso sem contar que se falou muito sobre a criminalidade em cidades como o Rio de Janeiro, os frequentes furtos e golpes a empresas e cidadãos, as taxas abusivas e ilegais cobradas pelos táxis cariocas e a corrupção da polícia e dos políticos, em especial.
Brasil, mostra tua cara
Quantas caras foram essas que a novela mostrou? Além de abordar a honestidade e a ambição num único cenário, Vale Tudo também escancarou tabus ao pelo menos tentar exibir o cotidiano de personagens homossexuais que constantemente encaravam o preconceito. Tiago, filho do canastrão Marco Aurélio, era um deles, embora nunca tivesse sido revelado que ele mantinha sentimentos pelo amigo, André (Marcelo Novaes). A irmã do personagem, Cecília (Lala Deheinzelin), que nutria um relacionamento abertamente gay, acabou sendo morta sem motivos no meio da trama. Vale Tudo foi prova que apesar de moderna e atual, nem todos os temas foram engolidos pelo grande público, que, neste caso, não quis mostrar "sua verdadeira cara".
Quem matou Odete Roitman?
Mistério dos treze últimos capítulos da trama, a morte de Odete Roitman (Beatriz Segall) deu o que falar. Depois disso, novelas como A Próxima Vítima, Torre de Babel, Belíssima e até a atual Passione usariam o agora clichê para prender o espectador. Prova de que mesmo o frescor de Vale Tudo pode parecer velho a longo prazo.
Do Terra

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