quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Passione: Dona Brígida volta e salva o fiasco da novela

São cenas pequenas e marcantes. A atriz dá banho de interpretação.

Em uma trama que chama atenção pelo fato já por si incomum de trazer quatro octogenários em papéis de realce, ela não é a única velhinha safada. Encontra sua contraparte, digamos, "do bem" na ricaça Brígida, representada por Cleyde Yáconis, de 87 anos. A matriarca – sogra de Bete (Fernanda Montenegro) e vinte anos mais velha do que esta, embora as duas atrizes tenham só seis anos de diferença – é esnobe e preconceituosa. Além disso, dá suas escapadas com o chofer da família, Diógenes (Elias Gleiser, de 76) tão logo o marido, Antero (Leonardo Villar, de 86), cai no cochilo. A misteriosa atividade a que patroa e chofer se dedicam é provavelmente inocente, mas as falas de duplo sentido carregam as cenas de libido. "Quero que o público imagine que os dois velhos podem, sim, estar fazendo sexo", diz o noveleiro Silvio de Abreu.

Simplesmente maravilhosa a atuação da atriz Cleide Yáconis na novela Passione.  
Brígida, a paulistana quatrocentona tem alergia àqueles que não vêm de sua classe social, maltrata o marido (que considera senil) e tem encontros furtivos com o chofer Diógenes (Elias Gleiser) – com quem mantém diálogos cheios de sugestões sexuais
Frase típica: "Chegou a viciada perdida. Nunca pensei que ia ter esse tipo de gente dentro de casa" (sobre a noiva do neto)

Brígida e Valentina destoam do padrão de velhice decantado nas novelas. Normalmente, atores na faixa etária de Daisy Lúcidi e Cleyde Yáconis ou são relegados a papéis de vovôs e vovós simpáticos ou mostrados como coitadinhos. O ápice dessa tendência foi o casal nonagenário (formado por Oswaldo Louzada e Carmem Silva, ambos mortos em 2008) que padecia nas mãos de uma neta sádica em Mulheres Apaixonadas (2003), de Manoel Carlos. Mas, como lembra o especialista Mauro Alencar, é possível pescar, na história do gênero, exemplos eventuais de velhinhos transviados. "Em tramas dos anos 70 como Os Ossos do Barão, de Jorge Andrade, ou O Casarão, de Lauro César Muniz, havia idosos com vida sexual bem apimentada", diz o estudioso. O próprio Silvio de Abreu tem tradição nessa matéria: em seu sucesso Sassaricando(1987), Paulo Autran (1922-2007) fazia um senhor que não resistia a um rabo de saia. Na novela atual, o autor avança ainda mais, tanto na idade dos atores quanto na voltagem de seus personagens.

Embora Passione venha ostentando uma audiência capenga para o horário das 8 desde sua estreia, há um mês, a Globo já detectou que a personagem de Cleyde Yáconis cativa o público. Veterana do teatro e dos folhetins, a atriz tempera a incorreção política com certa fleuma de dama quatrocentona (como são conhecidos os clãs tradicionais paulistanos). Brígida não poupa nem os idosos de discriminação: chama o próprio marido de "caduco". Apesar disso, trata-se de um registro ameno. 
A melhor idade de Passione
A melhor idade de Passione
Cleyde Yáconis, Leonardo Villar, Elias Gleiser e Flávio Migliaccio sabem que em novela tudo pode acontecer. E nas de Silvio de Abreu, mais. Deve ser por isso que Cleyde não notou que era galhofa a 'fofoca' contada a ela por Migliaccio, em suposta primeira mão, num intervalo das gravações, acompanhadas pelo Estado na semana passada. 'Não está sabendo? Você vai se apaixonar pelo Benedetto', disse ele, em tom de conspiração e se referindo à personagem dela, Brígida, e ao personagem de Emiliano Queiroz, que vive na Toscana cenográfica do Projac. 'Verdade? Como você ficou sabendo disso?', perguntou Cleyde, pensativa. 'Me falaram...', despistou ele, com um risinho maroto no canto da boca.
Em cena
Um deles, tem a ver com as visitas que Brígida faz ao quarto do motorista, Diógenes (Elias Gleiser). No texto, o autor solta frases que induzem o público a pensar que são segredos de alcova. Será? Mas nessa altura da vida? Brígida é serelepe o suficiente para isso, sem dúvida.
À mesa dos Gouveia, o queixo da aprumada Brígida cai quando ela vê o sujeito de paletó, tênis e cabelos despenteados (a marca de Migliaccio) entornar cerveja na taça e limpar o prato com miolo de pão. 'O Antero foi bom de copo, viu? Armamos cada chumbrega, hein, Antero!', entrega ele, para desespero do amigo.

Aos 87 anos, 90 peças no teatro e 30 novelas, a atriz paulista de Pirassununga diz que, "a palavra idoso não cabe em mim porque não paro de trabalhar. O trabalho me fez superar todos os baques que levei da vida. Ele me sustenta, me dá alegria, me dá prazer.
Cleyde não faz questão de saber se sua personagem joga cartas, trafica chocolates ou namora o chofer da família. O que a encanta é a vontade que Brígida tem de viver:
- Nas minhas últimas cinco peças, minhas mulheres eram velhas sofridas, perseguidas... Pegar uma Brígida, bonitinha, de cachinhos e namoradeira é fantástico. Ela não é cheirosinha?
Marota, Cleyde abre um sorriso e brinca dizendo que Silvio de Abreu é um traidor:
- Sempre combino com ele de fazer um papel bom e pequeno. Algum privilégio com a idade você tem que ter! E preciso falar que ele está me traindo: a Brígida está muito assanhada, crescendo...
O autor acha a maior graça da "piadinha":
- Brígida foi planejada para ela e eu jamais planejaria um personagem pequeno para uma atriz da magnitude de Cleyde.
A batalha diária de Brígida para marcar posição como a dona da mansão da família Gouveia faz Cleyde lembrar da própria mãe, Alzira Becker:
- Acho bacana ela não admitir ser hóspede. Essa luta pelo matriarcado é uma coisa bonita. Minha mãe morreu aos 86 anos e nunca perdeu o pulso de dona da casa. Acreditou até o fim que eu era dependente dela. Ela era a rainha da taba.
Pelo visto, Cleyde herdou muito da personalidade da mãe. Os seus amigos sabem que, definitivamente, não receberão um sorriso de volta se estenderem a mão para ajudá-la a subir uma simples escada.
- Paparicar velho não é bom - reclama: - O problema da idade é que a gente fica mais lenta. Nunca apresse um idoso. Se antes eu demorava cinco minutos para me vestir, agora levo 15.
Achei melhor admitir que estou com 87 anos. Não foi fácil. Às vezes esqueço a idade que tenho
Essa é a primeira novela em que Cleyde não vem guiando o próprio carro da chácara onde mora, em Jordanésia, a 26 quilômetros de São Paulo, para o Rio.
Não foi fácil. Às vezes esqueço a idade que tenho - revela a atriz, que ainda sobe no pé de jabuticaba para pegar os frutos antes do ataque dos passarinhos.
Durante as gravações de "Passione", pelo menos duas vezes por mês Cleyde encara seis horas de estrada na ida e seis na volta para visitar os cachorros e conferir como estão suas árvores de estimação.
- Só ando de avião quando é fundamental. Não gosto, não acredito que aquilo voe - justifica ela, que prefere carro ou ônibus: - Ficar 50 minutos em um avião é muito mais cansativo do que seis horas de carro. Quando venho de ônibus, compro duas poltronas para ficar confortável.
Em sua temporada em terras cariocas, Cleyde mantém o hábito de acordar com o galo e, embora more de frente para a praia, não ousa pisar na areia (ela tem uma antipatia pelo mar e por camarão que chega a ser engraçada). Nas tardes de folga, comanda projetos pessoais ("São segredinhos", despista) e estuda textos para o teatro.
- Tenho dois convites para peças ano que vem. E eu não procuro. Os textos vêm parar no meu colo. Escolher é difícil, tenho que saber qual peça é mais importante para o momento. Acredito no teatro como missão divina. Você tem o poder da criação. Eu crio seres humanos a partir da folha de papel e de palavras escritas. Para mim, isso é místico.
Cleyde ama o teatro, mas aponta outra vocação:
- Na próxima encarnação, vou ser médica porque a minha vocação verdadeira é a ciência. Houve algum desvio, mais tarde vou saber.Cleyde ingressou no mundo das artes cênicas fazendo bico como produtora responsável pelo guarda-roupa do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), em 1948. A soma do salário mais a mesada de 500 mil réis da irmã, Cacilda Becker, dava para pagar o cursinho preparatório para entrar na faculdade de Medicina. Em 1950, no entanto, ela precisou entrar de última hora para substituir Nydia Licia em "O anjo de pedra". E nunca mais desceu do palco.
Em setembro, Cleyde completou 60 anos de teatro. Mas que não venham com comemorações:
- Não gosto de data. Não festejo o Natal, nem aniversário. Receber presente de aniversário me dá mal-humor. Se cantarem "Parabéns pra você", rolo no chão. Gosto de comprar presentes fora de época, se vejo que aquilo vai bem para a Bel Kutner, levo.
- Me considero filha adotiva, ela é minha mãe escolhida. Passei muitos fins de semana no sítio com ela, que botava a enxada na minha mão e me fazia capinar. Ela me ensinou a não ser mulherzinha - conta Bel, que conheceu Cleyde em "Vamp" (1991). - Nos intervalos da novela, volta e meia ela falava que estávamos burros e distribuía textos de Shakespeare para estudarmos - lembra.
Foi casada com o ator Stênio Garcia durante 11 anos.
- Ele já está na quinta (mulher), né? Mas parece que agora acertou. Ele foi ao teatro me assistir em "O caminho para Meca", no Rio. Não chegamos a ser amigos. Não dá para tanta elegância - ri.
E por falar em elegância, Cleyde é naturalmente fina sem usar brincos, colares ou anéis. A base que brilha nas unhas só está ali por causa da Brígida. A camisa azul marinho, com canutilhos bordados, foi tirada do armário especialmente para a entrevista.
- Só tenho uma (camisa) assim. A combinação do jeans e camiseta é perfeita para o mundo. Temos duas pernas, somos feitas para usar calça e não saia - defende, com o mesmo desprendimento que demonstra após receber um elogio da repórter sobre o figurino escolhido: - Você quer a blusa para você?

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